PC Palabra Clave (La Plata), octubre 2024 - marzo 2025, vol. 14, núm. 1, e227. ISSN 1853-9912
Universidad Nacional de La Plata
Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación
Departamento de Bibliotecología

Dosier

Um diálogo entre a competência crítica em informação e as teorias anticoloniais a partir de Dussel, Quijano e Fanon

Marcus Victor Siqueira Josuá Gomes

Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil
Gabrielle Francinne de S. C. Tanus

Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil
Cita sugerida: Gomes, M. V. S. J. y Tanus, G. F. de S. C. (2024). Um diálogo entre a competência crítica em informação e as teorias anticoloniais a partir de Dussel, Quijano e Fanon. Palabra Clave (La Plata), 14(1), e227. https://doi.org/10.24215/18539912e227

Resumo: A competência crítica em informação (CCI) tem sua movimentação contrária à dimensão da competência por ela mesma ou centrada em um indivíduo que a partir de habilidades e conhecimentos se tornaria mais competente. Afinal, quais competências seriam essas sem que haja verdadeiramente uma conscientização das dimensões éticas, sociais, políticas e econômicas do sujeito no mundo capitalista? Assim, uma crítica a esse modelo liberal e hegemônico da mera competência é colocada por diversos autores que recorrem às teorias críticas das Ciências Sociais e Humanas, os quais fundamentam as bases da CCI. Nosso objetivo é, pois, continuar o diálogo trazendo outras bases teóricas em construção de um pensamento anticolonial, a partir dos decoloniais como Enrique Dussel, Aníbal Quijano e Frantz Fanon. Esta pesquisa é classificada como exploratória e de cunho bibliográfico. Consideramos que a CCI se perfaça também com outras epistemes cujo viés crítico e combativo ao modelo posto se torne o ponto de partida. Nosso estudo caminha, portanto, nessa direção, ligado aos estudos críticos pós-coloniais, por muito mais pensamentos inquietantes e menos calmantes epistêmicos, contrariando, assim, as narrativas dominantes.

Palavras-chave: Competência crítica em informação, Decolonialidade, Anticolonialidade, Estudos críticos, Enrique Dussel, Aníbal Quijano, Frantz Fanon.

A dialogue between critical information competence and anti-colonial theories from Dussel, Quijano e Fanon

Abstract: Critical competence in information (CCI) moves contrary to the dimension of competence itself or centered on an individual who, based on skills and knowledge, would become more competent. After all, what skills would these be without truly being aware of the ethical, social, political and economic dimensions of the subject in the capitalist world? Thus, a critique of this liberal and hegemonic model of mere competence is posed by several authors who resort to critical theories from the social and human sciences, which underlie the bases of critical competence in information. Our objective is, therefore, to continue the dialogue by bringing other theoretical bases in the construction of anti-colonial thinking, starting from decolonialists such as Enrique Dussel, Aníbal Quijano and Frantz Fanon. This research is classified as exploratory and bibliographic in nature. We consider that CCI can also be integrated with other epistemes whose critical and combative bias towards the proposed model becomes the starting point. Our study therefore moves in this direction, linked to critical post-colonial studies, with much more disquieting and less epistemic calming thoughts, thus contradicting the dominant narratives.

Keywords: Critical information competence, Decoloniality, Anticoloniality, Critical studies, Enrique Dussel, Aníbal Quijano, Frantz Fanon.

Un diálogo entre la competencia informativa crítica y las teorías anticoloniales de Dussel, Quijano e Fanon

Resumen: La competencia crítica en información (CCI) se mueve en sentido contrario a la dimensión de la competencia misma o centrada en un individuo que, a partir de habilidades y conocimientos, se volvería más competente. Después de todo, ¿qué habilidades serían estas sin ser verdaderamente conscientes de las dimensiones éticas, sociales, políticas y económicas del tema en el mundo capitalista? Así, una crítica a este modelo liberal y hegemónico de mera competencia es planteada por varios autores que recurren a teorías críticas provenientes de las ciencias sociales y humanas, que subyacen a las bases de la competencia crítica en información. Nuestro objetivo es, por tanto, continuar el diálogo aportando otras bases teóricas en la construcción del pensamiento anticolonial, partiendo de decolonialistas como Enrique Dussel, Aníbal Quijano y Frantz Fanon. Esta investigación se clasifica en de carácter exploratorio y bibliográfico. Consideramos que la CCI también puede integrarse con otras epistemes cuyo sesgo crítico y combativo hacia el modelo propuesto se convierta en el punto de partida. Nuestro estudio, por tanto, avanza en esta dirección, vinculada a estudios críticos poscoloniales, con pensamientos mucho más inquietantes y menos epistémicos tranquilizadores, contradiciendo así las narrativas dominantes.

Palabras clave: Competencia en información crítica, Descolonialidad, Anticolonialidad, Estudios críticos, Enrique Dussel, Aníbal Quijano, Frantz Fanon.

1. Introdução

Com a apropriação da informação, há de se poder relacionar-se melhor com o mundo, diríamos, em busca de enxergar com mais profundidade e complexidade as questões políticas que nos cercam, tecer perspectivas críticas. É importante perceber que sempre estivemos, desde o início do período colonial brasileiro, diante de uma sociedade cuja organização política se deu através dos interesses hegemônicos, ou seja, dos interesses capitalistas/colonialistas (hoje, neoliberais), em detrimento da autonomia popular e das diversas cosmovisões existentes dos povos nativos dos territórios invadidos. Praticamente toda a dimensão das relações sociopolíticas é, consciente ou inconscientemente, movida por esse status quo dominante, que, por meio das mídias, introjetam narrativas hegemônicas como forma de alienar e manipular a opinião pública. A globalização intensificou essas dinâmicas, pois tem como objetivo “maximizar os lucros e consolidar suas fatias de mercado” (Mattelart & Mattelart, 2000, p. 125), a partir da expansão do capital financeiro, por exemplo.

Transformar todo conhecimento e toda informação em mercadoria, em nome dos interesses econômicos, é um grande perigo. Essa cobiça neocolonialista intensifica os problemas sociais, ao contrário do que alguns pensavam ao trazerem somente aspectos positivos dessa dita sociedade da informação, que é também um projeto de poder com consequências nefastas, tanto que, atualmente, podemos designar a nossa sociedade de sociedade da desinformação (Francisco, 2004). O alerta do xamã Kopenawa Yanomami & Bruce Albert nos situa desse perigo, ao problematizar: “se os brancos pudessem, como nós, escutar outras palavras que não as da mercadoria, saberiam ser generosos e seriam menos hostis conosco. Também não teriam tanta gana de comer nossa floresta” (Kopenawa & Albert, 2010, p. 413). Embora, o intelectual esteja apontando bem mais para a situação dos povos da floresta, podemos compreender esse alerta como conflito de interesses: de um lado o exercício de poder (do já referido status quo dominante) e, do outro, a crítica ao modelo unidirecional do mundo (em outras palavras, a perspectiva do branco colonizador, o que pode ser entendido como a questão central da crise política e social em que vive o Ocidente).

O xamã alerta aos contemporâneos, a partir também de suas visões, seus rituais e suas profecias, digamos assim, que se faz necessário uma reelaboração das relações sociais; andar em outro sentido é primordial, “pisar leve na terra”, que não a do jeito comum que se tem feito desde então, nas pegadas coloniais. É urgente um outro sentido para a vida, a desenvolver outra relação com a natureza e com os seres vivos. Para melhor tratar a informação e se apropriar dela por meio de uma perspectiva social e crítica, propomos, então, que se deve refletir a partir de premissas elaboradas pela Competência crítica em informação (CCI), que se propõe trabalhar com a Teoria Crítica (ou melhor, com as teorias críticas, no plural), em outras palavras, um instrumento de compreensão das narrativas hegemônicas que embotam, escondem e deturpam as verdades e as relações de poder que permeiam as dimensões sociais e informacionais.

A partir das habilidades da CCI é possível que “a pessoa cidadã tenha competência em informação, enfatizando o pensamento crítico, consciência crítica e pensamento reflexivo” (Romeiro & Brisola, 2018, p. 3), portanto, a CCI é algo que na “guerrilha” da libertação social e política pode contribuir, de alguma, forma para a emancipação dos povos. A CCI nasce, então, a partir da necessidade de aprofundar e problematizar o conceito de information literacy, tanto no contexto norte-americano, quanto no Brasil conhecido como Competência em Informação (CoInfo). Diga-se de passagem, que o termo critical information literacy é utilizado desde a década de 2000, na literatura norte-americana, visando compreender os sistemas de opressão e combater as estruturas de poder, num movimento teórico e prático (Tewell, 2015). No Brasil, alguns estudos seguem nessa mesma linha de pensamento (Bezerra & Schneider, 2022; Brisola, 2016, 2021), o que traz, de certa forma, um caráter libertário à Biblioteconomia e Ciência da Informação brasileira, enquanto perspectiva crítica. Em pesquisa bibliométrica quanto ao uso do termo CCI nos artigos indexados pela Base de Dados Referenciais de Artigos de Periódicos em Ciência da Informação (Brapci) no Brasil, os autores identificaram um crescimento na última década, mas a produção ainda é tímida, sendo concentrada em alguns autores, sobretudo da região do sudeste brasileiro (Furtado, Inomata, Costa, Calvante & Lisboa, 2021).

Em resumo, vivemos numa crise global política e econômica, causada pelo recente processo de globalização, em que o capitalismo se reestruturou e continua a achar mecanismo para manter seus lucros e interesses, que vão de encontro aos interesses emancipatórios; logo, a informação e o conhecimento também se relacionam com os interesses do capital. No sentido de problematizar essa realidade o/a bibliotecário/a deve aparecer como provocador crítico dessas discussões e mais: desenvolver em seu ambiente de trabalho uma práxis libertária (ou que vamos ver a seguir, numa práxis anticolonial, isto é, um sistema de pensamento que se opõe ao colonialismo); buscando justamente contrapor-se a essa lógica dominante, advogando por um saber (e uma práxis) plural e questionadora. Para tanto, se apropriar da (e promover a) CCI se torna tarefa primordial, com vistas a uma prática de resistência, diante de uma noção de transformação social que efetivamente possibilite aos sujeitos o processo de conscientização das relações de poder que fundam e violentam as relações sociais, econômicas, políticas e culturais.

Diante disso, pensando em complexar ainda mais a CCI, levando em consideração outros aspectos da nossa resistência no campo da informação, temos, como objetivo dialogar com outras bases teóricas em construção de um pensamento anticolonial, a partir dos decoloniais como Enrique Dussel (1934-2023), Aníbal Quijano (1928-2018) e Frantz Fanon (1925-1961). Para contemplar uma dimensão do conceito de CCI que dê conta de discutir o colonialismo, pois “o colonialismo, portanto, é fundador da modernidade capitalista e uma não existe sem o outro” (Pazello, 2023, p. 603). Nessa direção, traremos à luz do debate autores como Dussel, Quijano e Fanon, com intuito de problematizarmos o conceito de CCI, aqui, dentro de um pensamento anticolonial que se configura como forma de resistência na prática e na teoria, tal qual o movimento da CCI que se funda numa praxis.

Vale destacar que, os autores em questão, embora estejam em campos conexos (das ciências sociais e humanidades), apresentam diferenças, sublinhadas por pesquisadores que estudam com propriedade as classificações teóricas (teoria pós-colonial, decolonial, descolonial, anticolonial), como, por exemplo, Boaventura de Souza Santos (2007), Luciana Ballestrin (2017), entre outros. Dentro da Teoria Decolonial estão o filósofo argentino Dussel e o pensador peruano Quijano, enquanto Fanon tem seu pensamento localizado dentro da teoria anticolonial (inclusive, anterior a estes dois autores). Como se percebe no texto escrito por Jéssica Müller e Rodrigo Sousa (2021), em que elaboram as diferenciações entre cada corrente (teorias pós-coloniais e decoloniais). Contudo, para este trabalho, essas diferenciações não serão levadas com tanto rigor, e, assim sendo, consideramos que o termo anticolonial é o mais amplo diante de todo histórico dessas disputas discursivas; pois abarca tanto as teorias críticas quanto os autores/filósofos dos territórios colonizados, antes silenciados pela estrutura epistêmica da colonialidade, que nesse caso é o que nos interessa.

Por fim, com esses autores (Dussel, Quijano e Fanon) podemos expandir as reflexões acerca da CCI, a partir desses conhecimentos, que trazem em seu corpus a complexa realidade sócio-histórica dos povos colonizados, ainda não muito discutida dentro da CCI, até mesmo porque a Teoria Crítica dos frankfurtianos (em específico, Adorno e Horkheimer, aos quais a CCI está mais ligada)1 não desenvolve ideias sobre as estruturas coloniais. Entendemos, pois, que as forças políticas, econômicas e sociais que dominam as relações entre sujeitos e informações são forças coloniais, e para compreender essas relações (coloniais) sugeriremos outros autores para a leitura. Quer dizer, os estudos anticoloniais possibilitando problematizações que, além de situar as narrativas subalternizadas, visibilizam nossos autores, nossas filosofias críticas.

1.1 Caminho metodológico

Esta pesquisa é de caráter exploratório, por ter “como objetivo proporcionar maior familiaridade com o problema, com vistas a torná-lo mais explícito ou a constituir hipóteses” (Gil, 2004, p. 41). Nessa direção, a movimentação das bibliografias é fundamental para a construção do texto que recorre ao entendimento da competência em informação, e, mais, recentemente, da CCI (ainda pouco trabalhado enquanto um caminho teórico e prático no cenário brasileiro). Assim, apontar outros caminhos epistêmicos a serem percorridos é deveras necessário para contribuir com a dinamicidade e a complexidade dos estudos informacionais, levando em conta a nossa latino-americanidade e colonialidade que nos envolve até os dias de hoje.

Para a construção desse diálogo que intenta uma CCI anticolonial como resposta aos mecanismos capitalistas e colonialistas de deturpação e aprisionamento da realidade, concentramo-nos em alguns autores, escolhidos intencionalmente, a saber: Fanon (1968, 2008) com o humanismo revolucionário; Dussel (1977, 1986), com a praxis da libertação; e, Quijano (2009) com conceito de “colonialidade de poder”. Fanon, psiquiatra e filósofo político, martinicano, faleceu em 1961, um revolucionário com efetiva movimentação dentro das lutas políticas de libertação dos povos e das colônias francesas no continente africano, também possui uma forte produção bibliográfica dentro dos estudos pós-coloniais e teorias críticas. Dussel, filósofo argentino, falecido em 2023, é considerado um dos expoentes da filosofia da libertação, uma renovação das teorias críticas das Ciências Sociais da Modernidade, rechaçando o colonialismo, o eurocentrismo, o capitalismo. Possui uma extensa produção bibliográfica sobre ética, filosofia, política, teologia, e é precursor dos estudos decoloniais latino-americanos. Quijano, falecido em 2018, foi sociólogo e escritor de nacionalidade peruana com uma extensa lista de obras produzidas e, dentre os vários legados, foi um dos membros responsáveis pela criação do grupo Modernidade/Colonialidade, que marca os estudos decoloniais e das teorias críticas na América Latina.

Estruturar reflexões teóricas dentro das relações sociais de territórios que foram colonizados não é algo simples e nem temos a pretensão de esgotar o diálogo. Desenvolver bases epistêmicas que dialoguem e conflitem com essa problemática histórica é nosso ponto de partida. Visto que o colonialismo “empreendeu um programa de hierarquização da humanidade que culminou com a produção de práticas sistemáticas de negação, destruição e aniquilamento do ‘outro’” (Nascimento, 2021, p. 59). A construção de teoria do conhecimento (gnose), dentro do contexto da modernidade (datada, aqui, a partir das invasões dos europeus nas Américas), tem sido pautada por princípios universais eurocêntricos, desconsiderando as diferentes formas de construção do saber (a dos colonizados). Em outras palavras, “a específica racionalidade ou perspectiva de conhecimento que se torna mundialmente hegemônica colonizando e sobrepondo-se a todas as demais, prévias ou diferentes, e a seus respectivos saberes concretos, tanto na Europa como no resto do mundo” (Quijano, 2009, p. 115).

Vale lembrar, o que Luiz Carlos Jafelice escreveu em seu livro acerca de um novo conceito sobre epistemologia (conceito esse que se pode pensar a partir da referida teoria decolonial, como se percebe ao longo da leitura) e que dialoga, portanto, com a nossa linha de raciocínio:

Em suma, neste ensaio, a palavra epistemologia não tem o sentido cristalizado e hoje anacrônico que foi sendo estabelecido sobre ela ao longo dos séculos a partir do Ocidente e que, como vemos, perdura até hoje! Aqui, epistemologia é entendida em um sentido amplo como modo de construção de conhecimento, que extrapola as meras cognição e razão (cognitivo-instrumental) enquanto domínios com os quais se subentende que ela está constitutivamente entrelaçada, e que, de forma alguma, a restringe a “conhecimento científico”, tampouco o privilegia nem é por ele caracterizada, normatizada, parametrizada, avaliada ou exemplificada (Jafelice, 2023, p. 123).

Esse pensamento sobre epistemologia de Jafelice abre os caminhos para a retomada da diversidade de saberes (que não necessariamente o normativo e/ou científico), realocando saberes tradicionais enquanto epistemologias também; isto é, coloca no mesmo patamar de relevância o fazer de um acadêmico e de uma curandeira ou de um pajé, um quilombola, por exemplo, que têm sido os questionamentos trazidos de diversos intelectuais negros e indígenas. Contudo, as práticas coloniais (da ciência e do cotidiano) violentaram e violentam esses conhecimentos ancestrais, da oralidade, de modo que a colonialidade dizima as possibilidades de diálogo com esses sujeitos e dessas categorias epistêmicas com a ciência praticada no Ocidente, pois – para eles, os colonizadores – a verdade sempre vem da Europa; os europeus se sentiam “como o novo e ao mesmo tempo o mais avançado da espécie” (Quijano, 2009, p. 111).

Sabemos, a bem da verdade, que muitas renovações epistêmicas vêm de sujeitos e categorias que nem sempre estavam integradas à academia. Vejamos o que diz Arthur Bezerra, Marco Schneider e Gustavo Saldanha (2019, p. 12), acerca desse tipo de renovação: “a resposta mais clara, no âmbito da economia política da epistemologia da Ciência da Informação no Brasil, estará dada justamente em um conceito fundado na práxis: a biblioteca comunitária”. Os autores situam, no contexto da epistemologia da Ciência da Informação e da Biblioteconomia, a biblioteca comunitária como uma categoria da práxis que revigora os estudos críticos da área; da mesma forma acontece com a Teoria Crítica (ou teorias críticas) que dialoga (dialogam) com a CCI, quer dizer, a sua força virá dessa abertura, como proposto por Jafelice, e por alternativas inspiradas no que situam Bezerra, Schneider & Saldanha (2019) – é o que, então, sugerimos e acreditamos.

2. Information literacy: um primeiro momento

Em 1974, nos Estados Unidos, iniciaram-se as primeiras discussões acerca do conceito da competência em informação (information literacy). Paul Zurkowski, advogado e lobista da indústria da informação, escreveu o relatório “The information service environment: relationships and priorities”,2 tido como um dos marcos para a área. Zurkowski, enquanto presidente da Associação das Indústrias de Informação, apresentou o relatório à Comissão Nacional de Bibliotecas e Ciência da Informação, nos Estados Unidos. Esse trabalho abordava um panorama dos recursos oferecidos pela indústria da informação, bem como comparava os serviços oferecidos pelas bibliotecas e explicitou as mudanças que estavam ocorrendo entre ambos, que sofriam forte influência do desenvolvimento tecnológico (Nascimento & Perrotti, 2017). Em seguida, constatava que “os cidadãos americanos não possuíam as habilidades para utilizar os recursos de informação disponíveis e que viessem a ser desenvolvidos” (Nascimento & Perrotti, 2017, p. 37), portanto, já explicitando a sua intenção, visando o mercado da informação.

Os primórdios da competência em informação têm uma profunda relação com o uso aperfeiçoado da informação para fins da indústria da informação do século XX, no contexto de Guerra Fria, como escreve Elizabeth Adriana Dudziak (2016). Nesse primeiro momento, a information literacy vai se traduzir “em treinamento, com o objetivo de tornar os americanos hábeis no uso das ferramentas tecnológicas de informação” (Nascimento & Perrotti, 2017, p. 3). A intenção de Zurkowski abrangeu o lado pragmático e econômico do uso da informação do que um viés social e crítico. A ideia dele era instruir os sujeitos a utilizarem as informações, sob a égide da eficiência e eficácia, dentro dos moldes embutidos pela indústria da informação que visava o consumo dos novos serviços tecnológicos (e como representante desse mercado cabe deduzirmos que, por trás disso tudo, objetivava-se seus interesses quanto lobista).

A produção de informação havia crescido bastante e, então, “o objetivo primordial era maximizar a produtividade” (Dudziak, 2016, p. 33), em que instruir as pessoas era fundamental. Houve, na época, basicamente duas forças, podemos dizer assim, que moveram essa information literacy – e que tiveram repercussões no continente americano no geral –, que foram: a) uma ideia de conceito voltada às necessidades do mercado (na época, em ebulição) da informação e; b) o uso de Tecnologias da Informação e Comunicação para busca eficiente da informação, por parte dos trabalhadores, graças a um pujante contexto científico e tecnológico vivido pela então “sociedade da informação”.

Leandro Nascimento e Edmir Perrotti (2017) afirmaram o que nós temos imaginado, ao analisarem o documento publicado por Zurkowski, quando afirmam que “os ideais iniciais do movimento da Information Literacy estão mais interessados em treinar para o uso dos recursos tecnológicos, preparar usuários para as tecnologias que educar para a informação, com o propósito de tornar os cidadãos protagonistas e críticos” (Nascimento & Perrotti, 2017, p. 39). Anos mais tarde, é publicado o documento “A nation at risk (United States, 1983)”, que defende uma “sociedade de aprendizagem”. Esse relatório “A Nation at Risk” e o documento de Zurkowski, embora ainda presos numa perspectiva tecnicista e mercadológica, foram, em alguns momentos, em dimensão internacional, quem contribuíram para o desenho dos primeiros escopos do campo da CoInfo – ligado a um domínio neoliberal: “as noções dominantes de competência em informação reforçam e reproduzem a ideologia neoliberal” (Bezerra, Schneider & Saldanha, 2019, p. 15).

Como as discussões continuaram no seio do movimento de internacionalização da competência em informação, no ano de 1989, estudiosos lançaram o relatório final do “Presidential Committee on Information Literacy” (ALA, 1989), cujo texto indicava uma noção mais abrangente de certa crítica, pois se tratava de “uma intenção social, de inclusão pelo acesso e uso crítico da informação, visando ao aprendizado ao longo da vida e atuação cidadã” (Dudziak, 2016, p. 39). Por outro lado, algumas lacunas ainda existiam mesmo com a presença de documentos mais progressistas, digamos assim, dado que falar numa certa crítica não quer dizer coisa nenhuma, embora, seja alguma coisa; é preciso, então, desencadear as epistemologias e mais que isso: as práxis.

Ainda que a CoInfo embrenhe-se por um viés mais tecnicista e, como vimos, reforçando o neoliberalismo, como apontado no estudo de Bezerra, Schneider & Saldanha (2019) alerta para o perigo dessa relação (competência/neoliberalismo), refletindo sobre a “ideologia da competência” a partir da abordagem da pensadora Marilena Chauí, e perceberam as repercussões no Brasil e no resto do continente sul-americano vem buscando contrariar a lógica dominante, em certa medida, justamente pela relação histórica e social que esse território compartilha entre si, tendo sido alvos da colonização. No entanto, essas investidas, ainda são tímidas, como mostra Anna Cristina Brisola (2021). Por outro lado, há que destacar que há em algumas produções traços de certa criticidade quando se coloca em relação à competência em informação com as dimensões estética, ética e política (Vitorino & Piantola, 2011). O fato é que a proposição da CCI no território nacional, analisada a partir das produções bibliográficas, não tem ocupado um espaço dentro do cenário acadêmico ampliado, trazendo a própria questão da manutenção da palavra competência, que deveria ser repensada pela área.

3. Competência crítica em informação: encruzilhadas, novos caminhos por vir

Como podemos observar, ao estudar as bases epistêmicas da CoInfo, os movimentos, sobretudo, de Zurkowski foram empreendidos com fins de solucionar questões da indústria da informação. Algumas provocações são levantadas em relação a esse primeiro momento, como as provocações pontuadas pelo estudo da Brisola (2021, p. 102): “controlando a formação desta competência também não se controla a percepção de mundo? Estariam pensando no controle ao focar nos aspectos tecnicistas e na apropriação da informação como produto capital? ”, já que para Zurkowski “o excesso de informação é uma condição universal que compromete a capacidade de avaliação” (Brisola, 2021, p. 102), e com isso se faz necessário novas investidas teóricas para se fugir do calabouço da mercadoria, do (neo)liberalismo.

Ao passar do tempo, aparentemente a CoInfo passa a se preocupar com novas problemáticas, por exemplo “o Comitê Presidencial da American Library Association – ALA reconhece a importância da Competência em Informação para manutenção de uma sociedade democrática, e a conceitua de acordo comos requisitos necessários para sua aquisição” (Olinto & Hatschbach, 2008, p. 22). No entanto, ainda sem “grandes desenvolvimentos ou reflexões para além da mera apresentação de tais ‘competências’” (Bezerra, Schneider & Saldanha, 2019, p. 14). Na lógica “puritana” da competência dá a entender que os seres estão num mesmo patamar social e político e basta dar o acesso à informação para que esses sujeitos se tornem capacitados e livres para escolherem aquilo que desejam, a partir de razoáveis esforços no uso das informações e das tecnologias de informação. Ao não levarem em conta as contradições inerentes às sociedades capitalistas (ou fundamentar, teoricamente, a crítica que poderia [re]produzir uma postura crítica), reproduz-se os mesmos modelos políticos saturados do capitalismo.

No Brasil, assim como no continente latino-americano, de modo geral, a conceituação da CoInfo vem sofrendo modificações, muito em razão do contexto sócio-histórico desses territórios. Desta forma, a competência em informação é desenvolvida “como um recurso para acelerar a superação das defasagens, no acesso e no uso da informação, que acompanham as grandes desigualdades sociais do país” (Olinto & Hatschbach, 2008, p. 24). Brisola, por sua vez, percebe que, mesmo alguns estudos expandindo suas percepções de CoInfo, mantiveram-se atrelados, “em algum nível, à perspectiva mercadológica, ao considerar a sociedade e as organizações que a compõem” (Brisola, 2021, p. 111); efetivamente, não podemos considerar a competência em informação como próxima da CCI, pois esta vem da crítica da primeira, o que requer do(a) pesquisador(a) discernimento teórico e prático do uso dos termos e, consequentemente, das suas implicações.

Seria, então, suficiente para o campo (visando a complexidade e a crítica) os conceitos apresentados pela CoInfo, mesmo aqueles que expandem o entendimento para um viés mais social, aparentemente? Para alguns pesquisadores (inquietos e inquietantes), a resposta segue, no mínimo, um caminho que desconfia disso tudo ou busca afirmar as teorias críticas, enquanto campo intelectual da crítica, pois se leva em consideração, nesses estudos, os contextos sociais, políticos e econômicos da sociedade, fugindo da lógica liberal em que a informação se embrenhou ao longo da história. A CCI, portanto, se caracteriza por um franco conflito ao status quo dominante; a se colocar na busca por alternativas (pedagógicas e práticas) aos problemas que encontramos no seio das desigualdades provocadas pelo capitalismo.

No livro “Competência crítica em informação: teoria, consciência e práxis”, organizado por Bezerra e Schneider (2022), constam possibilidades epistêmicas para a CCI, por apresentar um conceito em estado de impermanência (ou seja, em constante transformação), digamos, que busca o diálogo com a diversidade e com as teorias críticas. Assim como, outros conteúdos que estão no horizonte desse campo de pesquisa, como as questões de gênero e de sexualidade, as demandas das populações LGBTQIAPN+ e até mesmo questões envolvendo o etarismo (tema particularmente ainda pouco problematizado nas diversas áreas das humanidades, e também pela área da biblioteconomia e ciência da informação). O combate a toda forma de preconceito e à desigualdade é imprescindível nesse caso (e bem fundamentada, invariavelmente).

Muito se fala em Teoria Crítica e Pedagogia Crítica na perspectiva da CCI, mas a final o que seria, então, a teoria e a pedagogia crítica, dentro do contexto de CCI? A Teoria Crítica e a Pedagogia Crítica são uma das bases de sustentação que mais dão forma ao que chamamos de CCI; a primeira tem suas bases nos estudos da Escola de Frankfurt e no Materialismo Histórico e Dialético do Marxismo, e a segunda abarca as contribuições de Paulo Freire (Bezerra & Schneider, 2022). Brisola, em sua tese, nos situa no debate sobre essas epistemologias, quando afirma: “para a CCI não é a definição de informação o cerne da questão, mas sim o olhar crítico para esta informação, ou para toda informação. Esse é o fio principal da CCI que é puxado firmemente pela Teoria Crítica e pela Pedagogia Crítica” (Brisola, 2021, p. 123).

Nesse sentido, a CCI busca compreender amplamente as relações dos sujeitos com as coisas que interferem na construção do Ser, isto é, a cultura, a sociedade, a história, a economia, a política e o próprio poder (establishment), dentro de um meio social forjado na desigualdade e na desinformação/alienação (ou no incentivo à educação bancária, como é discutido por Freire). A pedagogia crítica ajuda o sujeito a se manter questionador dessa realidade, problematizando as relações econômicas e políticas a sua volta, na busca por uma consciência crítica. A consciência crítica, por sua vez, pressupõe uma prática, uma ação de contrariedade àquilo que o sujeito deduz, mesmo equivocado, (portanto, prática sempre a partir do questionamento), na construção de uma ética antessala da justiça social.

A CCI, portanto, enfatiza a percepção crítica e pedagógica da informação (e da relação que os sujeitos têm com ela); abrindo caminhos epistêmicos que antes não foram discutidos suficientemente pela CoInfo – como sugeriram Andréa Doyle e Brisola, “embora ao longo dos anos a CoInfo tenha se aproximado das perspectivas emancipatórias e sociais, na maioria dos estudos o foco está na relação dos sujeitos com a informação” (Doyle & Brisola, 2022, p. 84). A crítica da competência em informação, por isso, deve se dar “ao seu caráter eminentemente instrumental, que converte o aprendizado relacionado à aquisição da dita competência em algo maquínico, pouco reflexivo, muito operacional e, em última análise, subordinado ao mercado” (Bezerra, Schneider & Saldanha, 2019, p. 14).

4. O pensamento de Quijano, Dussel e Fanon: por um quadro epistêmico que contraria a colonialidade

Desde a invasão dos europeus ao continente que veio a se chamar América, os povos originários (e com a escravização, os africanos em diáspora) sofreram diversas violências, físicas e simbólicas. Bem sabemos que os colonizadores não levaram muito em conta a diversidade de pensamento e modos de vida que existiam nesses territórios. Essa perspectiva dos colonizadores é aniquiladora das identidades desses povos que tiveram suas terras invadidas e os que tiveram impedimentos de viver em sua terra; chama-se, então, de Modernidade esse período que estabelece a Europa como uma hegemonia política, intelectual e econômica. Trata-se, portanto, de um “novo paradigma de vida cotidiana, de compreensão da história, da ciência, da religião” (Dussel, 2005, p. 28). Para os invasores, regidos pelo viés do racionalismo universal europeu, os originários dessas terras eram sujeitos a quem não lhes foram facultados “qualquer capacidade cognitiva e que, por isso mesmo, seriam tão distantes do ideal de humanidade branco, androcêntrico e europeu” (Nascimento, 2021, p. 63); com isso, se percebe que o processo, além de sanguinário, foi também desumanizador, no sentido de objetificar e de subjetivar o considerado outro, o diferente.

Na segunda metade do século XX, críticas acerca dessas dinâmicas começaram a ganhar mais força. Frutos do movimento acadêmico chamado pós-colonial, que tem seus resquícios em perspectivas pós-estruturalistas europeias, de certo modo, vários pensadores propuseram questões a serem refletidas sobre o colonialismo e a colonialidade – dois conceitos importantes para que essas correntes desenvolvessem o pensamento acerca da realidade dos povos latino-americanos. Alguns deles radicalizaram ainda mais essas problemáticas (inclusive pondo em xeque as influências do pós-estruturalismo), o que ficou conhecido como o terceiro momento da teoria pós-colonial, chamada de Teoria Decolonial a partir dos textos de Dussel e Quijano. Outros autores, como Fanon, contribuíram para a problematização dessas questões, contrariando a lógica de dominação e violência cultural, simbólica e epistêmica exercida pela hegemonia eurocêntrica, em direção à revolução social, por meio da violência revolucionária; trabalharemos logo mais na seção com alguns dos conceitos desses referidos autores.

5. Aníbal Quijano & Enrique Dussel: a teoria decolonial (“colonialidade de poder” e “filosofia da libertação”)

A teoria decolonial surge no fim da segunda metade do século XX, a partir das discussões dos núcleos teóricos do pós-colonialismo; sua construção se deu por uma série de intelectuais, sobretudo de países do Sul Global, que se opunham ao modo colonialista/capitalista de estabelecer relações, no amplo sentido. Vale lembrar que algumas críticas internas foram levantadas no seio da expansão desse movimento (pós-colonialismo), causando rupturas e rachas entre os pensadores. A terceira fase do pós-colonialismo ficou conhecida por Teoria Decolonial, que, justamente, tecia essas críticas por entender que os outros momentos do pós-colonialismo permaneciam ainda vinculados às epistemologias europeias. Havia, nessa terceira corrente, integrantes desenvolvendo conceitos próprios, a partir da realidade dos povos colonizados, entre eles: Dussel (e seu conceito “filosofia da libertação”), Quijano (e sua “colonialidade de poder”) e Immanuel Wallerstein (2008), com o conceito “sistema-mundo”; então, tornou-se conveniente propor um terceiro movimento, no sentido de se deslocar das estruturas teóricas que se criticavam; criando, portanto, em 1998, o grupo Modernidade/Colonialidade.

O nome do grupo já dizia bastante. Para esses pensadores havia uma diferença entre colonialismo e colonialidade; o primeiro pertencia muito mais ao campo da dominação econômica, cultural, social e política que os países colonizadores exerceram sobre os territórios invadidos; o segundo, por sua vez, representa a continuidade desse processo, ainda que não existam mais empreendimentos colonizatórios como existiram no período das invasões europeias. Para Quijano, por exemplo, a colonialidade “é uma espécie de continuação desta dominação, mesmo após superado o pacto colonial” (Nascimento, 2021, p. 55). Quer dizer, mesmo no século XXI podemos falar sem nenhum problema sobre o colonialismo, mais precisamente, a colonialidade, por se tratar de um enlace contínuo do processo de colonização feito outrora; a invisibilização dos pensadores indígenas e quilombolas em detrimento do cânone europeu (ou até mesmo do cânone acadêmico científico), na atualidade, é parte dessa problemática.

Quijano produziu muito acerca de todo esse processo decolonial, ao longo da sua vida. Neste texto, trataremos apenas do seu conceito colonialidade de poder, por ter certo teor clássico (nada como começarmos pelo primórdio e observar suas disrupturas teóricas), como mais uma perspectiva epistêmica com efeito de sugerir críticas e caminhos comuns da latino-americanidade (ou da realidade de qualquer país colonizado, embora se devam levar em conta as peculiaridades históricas de cada contexto, portanto, não se pretende aqui um caminho universal, mas pluriversal) dentro do contexto da CCI.

A colonialidadede poder é fruto dessa dinâmica da colonização (e da modernidade), e, segundo Quijano (2009), origina-se e mundializa-se a partir do “nascimento” da América. A colonização/modernidade é um grande problema, porque introduz ao resto do mundo (não europeu), a partir do avanço do capitalismo europeu e da colonização, que a racionalidade europeia é o momento mais avançado “no caminho linear, unidireccional e contínuo da espécie” (Quijano, 2009, p. 75). A quem não pertencer a esse padrão, cabe ser chamado de “primitivo”, sendo de subjetivado; a humanidade passou então a ser classificada entre raças: superior e inferior. Já imaginamos quem foi considerado quem nessa história toda.

A invasão das Américas reconfigurou todo entendimento das coisas, como foi citado; o eurocentrismo tomou conta da cena. Passou-se a existir novas compreensões entre sujeitos, como a de raça e o de controle do trabalho, a partir das relações do capital e do mercado mundial, no continente invadido (Quijano, 2005). Essa mudança se percebe na seguinte fala do autor peruano:

A formação de relações sociais fundadas nessa ideia produziu na América identidades sociais historicamente novas: índios, negros e mestiços, e redefiniu outras. Assim, termos com espanhol e português, e mais tarde europeu, que até então indicavam apenas procedência geográfica ou país de origem, desde então adquiriram também, em relação às novas identidades, uma conotação racial. E na medida em que as relações sociais que se estavam configurando eram relações de dominação, tais identidades foram associadas às hierarquias, lugares e papéis sociais correspondentes, com constitutivas delas, e, consequentemente, ao padrão de dominação que se impunha. Em outras palavras, raça e identidade racial foram estabelecidas como instrumentos de classificação social básica da população (Quijano, 2005, p. 107).

A questão da escravidão, a servidão, a pequena produção mercantil, a reciprocidade e o salário, se estabeleceram como formas de controle de trabalho; algo inédito na história da tal chamada América (que alguns povos indígenas a chamam de Abya-Yala). Todo esse processo foi histórico e sociologicamente novo, porque foi deliberadamente estabelecido e organizado para produzir mercadorias para o mercado mundial (Quijano, 2005, p. 108).

A partir das novas relações econômicas e políticas que os invasores estabeleceram com o resto do mundo, formou-se uma nova identidade geocultural hegemônica: a Europa Ocidental. “Essa nova identidade geocultural emergia como a sede central do controle do mercado mundial. No mesmo movimento histórico produzia-se também o deslocamento de hegemonia da costa do Mediterrâneo e da costa ibérica para as do Atlântico Norte-ocidental”, como cita Quijano (2005, p. 109). Essa identidade centralizadora e dominante gerou muita riqueza aos colonizadores e devastadoras submissões (em todos os sentidos) das colônias (que outrora jamais passara por essa situação).

A partir do desenvolvimento do capitalismo, dado os fatos históricos mencionados aqui, que alavancaram, por consequência, a economia dos países europeus, surge nesse período uma nova divisão social: os colonos e os colonizados; os colonizados sequer recebiam salários (vide a escravização), exerciam trabalhos manuais e não remunerados. Os colonos, por sua vez, recebiam salários. A divisão do trabalho se deu pela divisão da “raça” (superior e inferior; colonos e colonizados; os privilegiados e os subalternos) e sempre foi injusta, assim como a concentração de riquezas, que seguia na mesma direção. Se o lucro se concentrava entre brancos europeus (e, consequentemente, seus reinados, impérios, sua estrutura capitalista, como queiram), logo a Europa passou a controlar o mercado do mundo e os interesses políticos e econômicos se davam conforme demandava o velho continente. Vejamos a elucidação de Quijano:

[...] o capital, na relação social de controle do trabalho assalariado, era o eixo em torno do qual se articulavam todas as demais formas de controle do trabalho, de seus recursos e de seus produtos. Isso o tornava dominante sobre todas elas e dava caráter capitalista ao conjunto de tal estrutura de controle do trabalho. Mas ao mesmo tempo, essa relação social específica foi geograficamente concentrada na Europa, sobretudo, e socialmente entre os europeus em todo o mundo do capitalismo. E nessa medida e dessa maneira, a Europa e o europeu se constituíram no centro do mundo capitalista (Quijano, 2005, p. 110).

A colonialidade de poder, então, se relaciona com o domínio mercantil (geopolítico) que a Europa exerceu sobre o resto do mundo, sobretudo nos países colonizados, e que se atravessa por dois eixos principais: a ideia de raça e a questão do trabalho/capital (o uso e abuso dos recursos e produtos gerados na América), que gerou uma nova configuração geocultural, a que podemos exprimir como eurocentrismo, de certa forma. A dupla égide conceitual que configura o contexto histórico desse período tal como é, é justamente: modernidade e colonialidade. Para não deixarmos de citar o assertivo pensamento de Quijano (2005, p. 110), em que ele diz o seguinte (e que explica todo esse processo colonial): “Com efeito, todas as experiências, históricas, recursos e produtos culturais terminaram também articulados numa só ordem cultural global em torno da hegemonia europeias ou ocidental”.

A filosofia da libertação, por sua vez, é um conceito desenvolvido por Dussel, que também caminhou na direção da teoria decolonial, ajudando-a a ser construída e comunicada em todas as esferas acadêmicas possíveis. Dussel até chegar à conceituação de seu conceito, faz investigações filosóficas de grande gabarito; estudando desde os clássicos gregos aos filósofos contemporâneos, tece suas críticas e faz suas projeções acerca do que ele mesmo define sobre filosofia. Para ele, a filosofia da libertação é um intento metodológico de vir a ser a filosofia uma “dialética pedagógica da libertação, uma ética antropológica, antes de mais nada, ou uma metafísica histórica” (Dussel, 1986, p. 190).

Importante dizer é que em Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Immanuel Kant ou Martin Heidegger, o filósofo Dussel observava verdadeiros problemas para que com eles se construísse um pensamento próprio dos povos latino-americanos, então, os descartou, criticamente, digamos. O autor chega a afirmar que outros filósofos (críticos dessa dialética hegeliana) foram “autênticos críticos” que poderiam, pois, estabelecer certo diálogo com uma crítica latino-americana, como Marx, Feuerbach e Kierkegaard, para não citarmos Levinas ou Schelling. Dussel chegou a afirmar que esses autores “são a pré-história da filosofia latino-americana” (Dussel, 1986, p. 190), embora ainda imbuídos de territórios coloniais.

A solução criada por Dussel para contradizer o método dialético hegeliano (e até mesmo o pós-hegeliano – que ele vai classificar como “ana-dia-lético”, a “verdadeira dialética” –, ainda que considere os críticos de Hegel primórdios do pensamento latino-americano) foi o desenvolvimento do método analético, que “é a passagem ao justo crescimento da totalidade desde o outro e para ‘servi-lo’ criativamente” (Dussel, 1986, p. 196); ou, em outro sentido, interessa a Dussel o “rosto do pobre”, do “índio dominado”, do “mestiço oprimido”, do “latino-americano”; “é uma filosofia da libertação da miséria do homem latino-americano, mas e ao mesmo tempo, é ateísmo do deus burguês e possibilidade de pensar um Deus criador, fonte da própria libertação” (Dussel, 1986, p. 197). Ao contrário, o método dialético, sobretudo ao modo hegeliano, para o argentino, continuaria a impor a hegemonia da totalidade europeia, aqui o outro continuará objeto, no máximo conceito, sem efeito prático no real.

No pensamento dusseliano, a ação de justiça (que é amor) no real é o que importa (não sendo, portanto, mera conceituação), o que se quer é simplesmente “deixar o outro ser outro”; o filósofo com pretensa libertadora precisa saber ouvir o outro e, a partir da escuta, desenvolver uma práxis da libertação. Esse Outro para Dussel é o rosto que fora esganado e posto como desvalido pelos europeus. Vejamos o que Dussel tem a nos dizer sobre tudo isso:

O filósofo que se compromete com a libertação concreta do outro acende ao mundo novo [...], admirado daquele que venturosamente se desdobra ante seus olhos, histórica e cotidianamente. O mito da caverna de Platão pretendeu dizer isso, mas disse justamente o contrário. O essencial não é ver, nem é luz: o real é o amor de justiça e o outro como mistério, como mestre. O supremo não é a contemplação, mas o face-a-face dos que se amam a partir daquele que ama primeiro (Dussel, 1986, p. 210).

Por fim, o pensamento do filósofo argentino exprime uma necessidade de se construir uma filosofia latino-americana, a partir de outras premissas, reelaborando a metafísica e a ontologia ocidental – a vir a ser “transontologia” - (e que acaba se estendendo para o resto da América e demais continentes colonizados); é o “pensar que sabe escutar a palavra analética, analógica do oprimido” (Dussel, 1986). Em outras palavras ele nos diz que “a práxis da libertação é o próprio ato pelo qual se transpõe o horizonte do sistema e se entra realmente na exterioridade, pela qual se constrói uma nova ordem, uma nova formação social mais justa” (Dussel, 1977, p. 69).

6. Frantz Fanon: no caminho do humanismo radical

O humanismo revolucionário (ou o humanismo radical) é uma concepção desenvolvida pelo psicanalista e intelectual revolucionário, Fanon quem é da mesma linhagem de Dussel e Quijano, digamos assim, isto é, veio também de certa tradição dos estudos pós-coloniais; no caso do pensador martinicano, introjetando-se nessa tradição, como um precursor, pertencente à primeira fase da pós-colonialidade (Ballestrin, 2017), grosso modo, chamada anticolonial – vale lembrar que essa relação de Fanon e a pós-colonialidade é problematizada em Deivison Faustino (2018). Suas principais influências são o marxismo, a psicanálise, o pós-colonialismo, o existencialismo, as lutas por libertação nacional, entre outras (o que não isentou as críticas feitas por ele a respeito de algumas dessas correntes teóricas e políticas).

Fanon publicou o primeiro livro relativamente cedo, levando em conta a densidade da sua escrita, o seu Peau noire, masques blancs (“pele negra, máscaras brancas”) aconteceu quando ele tinha 27 anos, de modo que se tornou um dos livros mais importantes de sua trajetória, em que se vai contar sobre a sua “experiência de um homem negro mergulhado num mundo branco”, palavras ditas por Francis Jeanson, autor do prefácio desse mesmo livro (Wallerstein, 2008). O autor, assim como os outros críticos ao universalismo eurocêntrico, tece suas críticas voltadas para superação da dicotomia que o invasor incutiu no corpo e na alma dos povos invadidos, isto é, a lógica binária da racialização (“civilizado e primitivo”; “branco e preto”; “superior e inferior”), e nesse desenvolvimento teórico ele faz duras críticas ao humanismo europeu, que é o humanismo que nega o outro, nega as diferenças. Portanto, como se observa, há uma recusa desse universalismo ocidental, com vistas a, de forma a se contrapor, produzir um “novo humanismo”, voltado à desracialização da experiência “por meio da afirmação aberta e conjuntural de particularidades universais” (Faustino, 2018, p. 16). No livro “os condenados da terra”, Fanon traduz essa desumanização, como podemos conferir a seguir:

A violência colonial não tem somente o objetivo de garantir o respeito desses homens subjugados; procura desumanizá-los. Nada deve ser poupado para liquidar as suas tradições, para substituir a língua deles pela nossa, para destruir a sua cultura sem lhes dar a nossa; é preciso embrutecê-los pela fadiga. Desnutridos, enfermos, se ainda resistem, o medo concluirá o trabalho: assestam-se os fuzis sobre o camponês; vêm civis que se instalam na terra e o obrigam a cultivá-la para eles. Se resiste, os soldados atiram, é um homem morto; se cede, degrada-se, não é mais um homem; a vergonha e o temor vão fender-lhe o caráter, desintegrar-lhe a personalidade (Fanon, 1968, p. 9).

Para o autor, a realidade do negro colonizado é a realidade de alienação, promovida pela colonização e pelo imperialismo, que subalternizam o território e seus povos, subjugando-os à inferioridade existencial, portanto, faz o negro negar a si mesmo e vislumbrar no branco a verdadeira humanidade; em sentido contrário, quer dizer, a solução para essa situação seria, então, o processo inverso, a desalienação, que, para Fanon, tem a ver com a tomada de consciência, por parte do negro (ou qualquer outro povo do “terceiro mundo”), das realidades econômica e social, pois “só há inferioridade a partir de dois processos: incialmente econômico e em seguida pela interiorização, ou melhor, pela epidermização dessa inferioridade” (Fanon, 2008, p. 28).

Ressalta que “a alienação do negro não é apenas uma questão individual. Para ele, ao lado da filogenia e da ontogenia, há a sociogenia” (Fanon, 2008, p. 28). O processo de epidermização da inferioridade racial é fruto do processo sociohistórico, colonial, chamado de sociogenia ou sociogênese; como forma de combate desse processo, “[nesse] sentido, não adianta o indivíduo se tratar isoladamente, se a sociedade não mudar, pois é a sociedade racista e colonialista que produz a desumanização de corpos não brancos, ou não europeus” (Castro, 2022, p. 259).

Em Fanon, também se percebe do fator da violência como fator fundamental para a superação da ordem colonialista, e concomitantemente, no estabelecimento do humanismo radical; em Os condenados da terra (1968) desenvolve algumas reflexões que desencadeiam numa perspectiva de luta revolucionária pautada na prática, expondo experiências de resistência, como a argelina (além disso, expõe as contradições dessas lutas nacionais, que, por vezes, caíram em alguns equívocos de cunho organizacional e estratégico). O autor afirma que “a descolonização é sempre um fenômeno violento” (Fanon, 1968, p. 25). Além disso, o processo de descolonização é fundamental para o surgimento de um “novo homem”, uma nova sociedade, em outras palavras, “introduz no ser um ritmo próprio, transmitido por homens novos, uma nova linguagem, uma nova humanidade. A descolonização é, em verdade, criação de homens novos” (Fanon, 1968, p. 26).

Dito isto, a descolonização, segundo Fanon, é um combate entre dois protagonistas (os colonos e os subalternos); ora, se a descolonização é a fabricação de uma “nova humanidade”, há de ter conflitos entre os grupos, pois estes seguem caminhos opostos, um estanca e outro irrompe. Cabe, então, a essa irrupção, para o autor, a premissa de se munir de muitas estratégias de resistência para se chegar ao objetivo da descolonização, e entre elas, a violência; essa nova sociedade (que é/está organizada em torno de uma transformação radical) “só pode triunfar se se lança na balança todos os meios, inclusive: a violência, evidentemente” (Fanon, 1968, p. 27). Vejamos outra passagem interessante acerca disso tudo, em que o autor diz: “o colonizado que resolve cumprir este programa, tornar-se o motor que o impulsiona, está preparado sempre para a violência. Desde: seu nascimento percebe claramente que este mundo estreito, semeado de interdições, não pode ser reformulado senão pela violência absoluta” (Fanon, 1968, p. 27).

Vale ressaltar, que Fanon pertence a uma geração, cuja forma de pensar a resistência é de um jeito, talvez um pouco diferente as dos dias atuais (e que cause até certo medo); uma luta bem mais pujante, radical, diga-se de passagem. Havia, por exemplo, em sua época lutas por independência (no caso argelino, no qual o martinicano se debruçou), em que forças de libertação nacional atuavam fortemente. Para o autor, a luta anticolonial violenta não é irresponsável, no sentido de ser, digamos, um impulso juvenil, muito pelo contrário, é como uma ferramenta de organização e enfrentamento ao inimigo, a colonização, e, em sua opinião, imprescindível para escapar das garras da colonialidade; visto que “o colonialismo é a violência em estado puro, ele só se curvará diante de uma violência maior” (Castro, 2022, p. 261).

Não nos deixemos levar por certos moralismos, que simplificam o debate; movimentos insurgentes (revolução russa, zapatismo, revolução curda, revolução chinesa, luta armada na ditadura, Comuna de Paris, revolução espanhola, Quilombo dos Palmares etc. etc.) sempre tiveram no uso da violência um modo em que a resistência se estabelecesse enquanto práxis para emancipação (e que podem ser compreendidos pelo prisma da autodefesa e autodeterminação dos povos); percebemos, então, que o humanismo radical de Fanon é pautado pelo real, pela capacidade, simbólica e política, que os colonizados têm de se (auto)organizarem e se libertarem. Ademais, em relação aos valores do colonizador, o autor, ironicamente, afirma que a massa de colonizados deve “zomba[r] desses mesmos valores, insulta-[l]os, vomita-[l]os” (Fanon, 1968, p. 32). Quer dizer, “a luta é orientada por um humanismo que a violência anticolonial pode transcender a sua dimensão particularista e atuar, de fato, como elemento impulsionador de uma nova sociabilidade” (Faustino, 2018, p. 80). Portanto, a luta violenta emancipatória é fundamental na questão do novo humanismo para Fanon.

Portanto, o pensamento de Fanon, ainda que o mesmo tenha falecido jovem, com apenas 36 anos, é denso, suntuoso e complexo; encontra-se muita influência das mais sofisticadas filosofias europeias, como Friedrich Nietzsche, Sigmund Freud, Jacques Lacan, Paul Sartre, Karl Marx, entre outros, sem falarmos dos aprendizados que o autor tirou das lutas por independência em países africanos, que acabaram moldando a práxis revolucionária dele próprio, na qual tem como compromisso a descolonização, algo além das propostas nacionalistas, como o autor sublinha, e, evidentemente, se inserindo numa postura crítica ao capitalismo e imperialismo.

Falas inconclusivas: pontos de partida

A colonialidade é o exercício de poder praticado pelo eurocentrismo; a dominação cultural, intelectual, social, subjetiva e política exercida pelo Ocidente (Europa – e que podemos pensar atualmente na dominação exercida pelos Estados Unidos, em analogia), em detrimento do apagamento e da invisibilização das epistemes e práxis dos territórios colonizados, no nosso caso, da América Latina. Desse modo, os estudos anticoloniais são bastante relevantes, dentro do contexto da CCI, uma vez que, nesse caso, a informação, imersa na dimensão das relações de força e poder, se relaciona diretamente com os contextos (sociais, políticos, econômicos e culturais) e produz efeitos na prática, na vida dos sujeitos e da sociedade. Considerar a cultura dos povos latino-americanos (não eurocentrados), nos estudos informacionais, para o aperfeiçoamento de uma práxis da CCI é traçar um caminho justo e salutar, por se levar em conta a realidade colonial em que esses povos estão submetidos, além de traçar a crítica ao “epistemicídio” provocado pela anulação e desqualificação dos povos subjugados (Carneiro, 2005), assim, propondo uma perspectiva de CCI ancorada nos preceitos anticoloniais e preparada para lidar com esses contextos.

Nesse sentido, a CCI atua na descolonização do seu próprio pensar e fazer, questiona e combate os mecanismos de poder impostos pelo colonialismo epistêmico, abrindo possibilidade para se pensar e construir o pensamento crítico dos sujeitos informacionais através de uma filosofia libertadora, como sugere Dussel (1986). Ao mesmo tempo em que pensar a Pedagogia Crítica da CCI, sob pretexto anticolonial, é, sobretudo, “pedagogizar o descolonial e descolonizar a pedagogia” (Righetto, Karpinski & Vitorino, 2021, p. 17); esse movimento que deve estar presente num projeto de CCI anticolonial, que vai ao encontro da perspectiva da educação libertadora presente na extensa obra de Freire (2018), a qual está estabelecida dentro dos preceitos da CCI, trabalhados por Brisola (2021), de modo que o teor crítico da pedagogia se revigora por meio das singularidades na criticidade expressa por um modo de vida não eurocentrado, produzindo, então, uma pedagogia crítica e anticolonial da informação, como combate aos mecanismos dominantes.

A descolonização, por sua vez, é capaz de produzir um “novo homem” (Fanon, 1968), na medida em que esse processo torna o sujeito protagonista de sua história, modificando fundamentalmente o ser. Nesse sentido, posto que a CCI sugere que, sob as condições conceituais da Teoria Crítica de Max Horkheimer, “a informação é enviesada e intersubjetiva: enviesada por ser transpassada pela condição humana, social e histórica; intersubjetiva por reconhecer o caráter tecido e relacional da informação, com papel ativo dos sujeitos nos sistemas de informação” (Brisola, 2021, p. 123), é tarefa da competência crítica, posta em prática, por meio das ações dos profissionais, desenvolver um novo sujeito informacional, que possa perceber, por exemplo, a colonialidade de poder (Quijano, 2009), esse mundo unidirecional, uníssono moldado pelos discursos dominantes e coloniais, que silencia as demais formas de saber. Desse modo, a possibilidade do surgimento desse novo ser humano é pertinente nessa perspectiva, para que o sujeito, atuando no real, enquanto cidadão crítico participe e crie as condições do “novo humanismo”, reconhecendo as particularidades dos sujeitos e fortalecendo-as, então, esse novo ser informacional envolve-se no real, levando em consideração as experiências dos saberes locais, para estabelecer modos de vida não eurocentrados e lutar por justiça e igualdade; visto que a CCI é uma luta informacional por um mundo igual e sem exploração.

Ademais, a teoria crítica, base do pensamento em CCI, pode ser desarraigada das estruturas eurocêntricas, por meio de uma “invasão” epistêmica anticolonial que a modifica, uma vez que os frankfurtianos elaboraram um sentido de emancipação a partir da modernidade eurocêntrica (Baltar, 2020), ao não levarem em conta o apagamento epistêmico de outros povos, provocado pelo eurocentrismo. Para tanto, com vistas a provocar uma virada epistêmica, é necessário que a alternativa para essa problemática se dê a partir do reconhecimento de um outro estatuto de alteridades, estabelecido pela transmodernidade (Baltar, 2020, grifo nosso), que dê à ciência e à filosofia e, por tabela, a CCI um novo traçar conceitual e pragmático, calcado na apropriação anticolonial que os sujeitos podem desenvolver diante dos fenômenos informacionais, sociais e culturais; esse caminhar crítico e plural só é possível de se interligar pois se sabe que a teoria crítica “estimula e valoriza a pluralidade de modelos críticos em seu interior” (Nobre, 2004).

Os estudos anticoloniais podem, então, se expressar fortemente no que Brisola (2021) chamou de dimensão da CCI em relações étnico-raciais, mas, mais que isso o estudo anticolonial tem a força que renova e alarga a criticidade dos sujeitos, até porque não é possível pensar as transformações e, consequentemente, a apropriação informacional, por um viés crítico, sem levar em conta o efeito que a colonialidade exerce na subjetividade dos sujeitos, de modo geral. Portanto, as engrenagens teóricas da anticolonialidade são ferramentas conceituais autênticas e particulares para serem pensadas, inclusive, como pontos de partida para os estudos informacionais em CCI, tal qual a teoria crítica dos frankfurtianos e a pedagogia freireana.

Por fim, ainda que busquemos neste texto introduzir os estudos anticoloniais em diálogo com o campo da CCI, sabemos que muitos pontos dessas discussões apresentadas aqui, em certa medida, foram discutidos em outros textos da área da CI, no entanto, não com a particular atenção e detalhe que nós discutimos, tampouco através dos caminhos conceituais que sugerimos. Lembramos que com isso não queremos cessar a discussão, muito pelo contrário, saudamos um caminhar de possibilidades infinitas, eternas aberturas, de diálogo e crítica; portanto, construímos essa teia discursiva por meio dos conceitos que nos possibilita pensar numa práxis anticolonial, que tem o potencial para transformar as ações e as reflexões dos profissionais, alterando, inclusive as mediações junto aos sujeitos informacionais; é importante que se diga, portanto, que há tantos outros fazeres teóricos, como os autores de perspectivas não eurocentradas pontuam muito bem; ao passo que este estudo da CCI sirva de inspiração para demais caminhares, discutindo ainda mais a multiplicidade epistêmica que retoma o protagonismo dos povos, no bojo das discussões informacionais.

Roles de colaboración

Marcus Victor Siqueira Josuá Gomes

Concepção e elaboração do estudo, análise e interpretação de dados, Redação e rascunho original, Redação e revisão e edição.

Gabrielle Francinne de S. C. Tanus

Concepção e elaboração do estudo, análise e interpretação de dados, Redação e revisão e edição.

Referências

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Notas

1 Escola de Frankfurt, surgiu em 1923, com o Instituto para a Pesquisa Social, em Frankfurt, na Alemanha, fundada por um grupo de filósofos, sociólogos e cientistas sociais ligados às teorias marxistas. Surgiu em um contexto social, econômico e político de profusão da comunicação em massa, da indústria cultural, e de crítica às teorias tradicionais, como, por exemplo, teorias iluministas, positivistas, propondo ainda uma leitura crítica do marxismo. É marcada por diferentes momentos e autores de várias gerações.
2 Paul G. Zurkowski cunhou o termo "Competência informacional" (Information Literacy), em 1974, quando era presidente da Associação da Indústria da Informação (Information Industry Association). Em um relatório para a Comissão Nacional de Bibliotecas e Ciência da Informação ("The Information Service Environment Relationships and Priorities), que se tornou referência para área da Biblioteconomia e Ciência da Informação, em especial, para as pesquisas com a temática da competência em informação.

Recepción: 06 Abril 2024

Aprobación: 20 Junio 2024

Publicación: 01 Octubre 2024

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